A fundadora do ‘Favela Orgânica’ nos recebeu em sua casa, no Morro da Babilônia (RJ) e deu um show de autoestima e empreendedorismo
‘Você sabe onde fica o Bar do Biroska?’, perguntamos a dois meninos conversando na calçada, perto de uma parede pintada com os rostos de Mahatma Gandhi e Nelson Mandela, na base do Morro da Babilônia, no bairro do Leme, Rio de Janeiro. Eles dizem que não. Perguntamos pela casa de Regina Tchelly e a resposta vem rápida: “é só subir aquela rua e depois virar à…”. Quando olhamos, avistamos Regina descendo uma série de escadas com um vestido marrom e os cabelos cor de vinho presos num rabo de cavalo baixo.
A mulher que nos recebe de braços abertos nasceu em Serraria, Paraíba, tem 32 anos, e tem como nome de batismo Regina Coelli de Araujo Freitas. Veio para a cidade maravilhosa aos 19 para trabalhar como empregada doméstica. Incentivada pela ex-patroa, fez um curso de gastronomia que lhe rendeu maior acesso ao mercado de trabalho gastronômico. No entanto, ela notou que seu talento poderia, assim como o aroma de um prato bem temperado, ir muito além dos restaurantes cariocas, invadindo outros ambientes…
Apoiada pela Agência de Redes para Juventude, ela criou o Favela Orgânica, iniciativa que oferece oficinas, capacitações e serviços em gastronomia alternativa e práticas sustentáveis, como a criação de hortas comunitárias em comunidades pacificadas da cidade. Por este trabalho, ela tem se destacado como uma das empreendedoras sociais mais brilhantes e criativas do país, uma verdadeira missionária quando o assunto é o aproveitamento integral dos alimentos como estratégia de combate à pobreza e à fome.
Apesar de receitas consideradas exóticas como risoto de casca de melancia lhe renderem fama, seu trabalho vai muito além do aproveitamento de cascas, talos e sementes. “O Favela Orgânica trabalha com o Ciclo do Alimento, porque pra mim não é interessante te ensinar a fazer uma tapioca de casca de banana com alho poró se você não se conscientizar do próprio consumo.”, ela explica. De forma holística, as oficinas do ‘Favela Orgânica’ oferecem noções mais avançadas sobre cada etapa do ciclo:
“Importante é você saber que sua banana pode resultar em 3, 4 alimentos diferenciados. A banana você come, com a casca você faz um recheio, com o biquinho da casca você faz uma farofa. Mesmo que você não a cozinhe, você pode fazer dela uma compostagem, um adubo. A ideia é você retornar à terra o que a terra te dá. O que você planta, você colhe. Na nossa vida, essa é a coisa mais certa”. E a colheita tem sido farta para Regina.
Prova disso é que este ano ela foi convidada para ministrar uma aula sobre aproveitamento integral de alimentos na Universidade de Ciências Gastronômicas de Pollenzo, na Itália, sendo muito elogiada por Carlo Petrini, fundador do movimento Slow Food. Também recebeu o Prêmio Toda Extra, que reconhece mulheres que fazem a diferença, na categoria gastronômica ‘Toda Tempero’ e o Prêmio Sebrae Mulher de Negócios e, em 2012, foi contemplada com o Prêmio Aliança de Empreendedorismo Comunitário, da Aliança Empreendedora. “Todo mundo nasce empreendedor. Basta você se dedicar à coisa que você mais gosta de fazer na vida”, ela fala com naturalidade.
O que chama atenção em sua fala sobre sustentabilidade não são os discursos sobre possibilidades futuras de escassez de alimentos. Regina acredita que a sustentabilidade é intrínseca ao amor próprio e que quando as pessoas gostam de si mesmas, é mais fácil construir um mundo efetivamente melhor. “Estamos em um estado que a gente não pensa na gente conscientemente. Se a gente pensasse, a gente não faria o que a gente faz. Pra ser sustentável, a gente precisa se amar e se acreditar”, ela pontua.
Ela nos leva até sua casa, um cantinho simples e extremamente organizado, onde mora com as duas filhas. Sua sala de estar é um espaço de produção com três geladeiras/freezers, três forninhos elétricos, dois pequenos balcões e vários potes de plástico onde ela guarda utensílios de cozinha, luvas e toucas. Até chegarmos lá, ela para diversas vezes para conversar com moradores, dá recados, manda beijos e cheiros, ao melhor estilo vereadora do bairro.
Em sua casa, ela faz questão que experimentemos seu caldo de casca de abóbora, regado com azeite e gergelim e tarteletes de brigadeiro feito com casca de banana, cobertos de farofa de amendoim. Depois de provar as iguarias, nos sentimos tão alimentadas e satisfeitas, que dispensamos o almoço.
No alto do Morro da Babilônia
À esquerda, Regina e o amigo Pituca. No centro, Bar do Alto, cantinho gastronômico ousado no Morro da Babilônia. À direita, Regina saboreia o petisco Patriota.
O tratamento carinhoso a todos faz com que ela seja uma figura muito querida entre os moradores da Babilônia. Da mesma forma são tratadas as pessoas que participam de suas oficinas e workshops. “Na Favela Orgânica eu não tenho empregados, eu tenho parceiros. Eu não sou patroa, sou parceira deles e de quem quiser. Quem trabalha no projeto, tem que respeitar os alimentos e as pessoas que vão comê-los”.
Depois de conhecermos um pouquinho de sua vida, ela nos leva para conhecer seu amigo Rubens Zerbinato, o Pituca, dono do Bar do Alto, um restaurante que funciona há 7 meses no Morro da Babilônia e que aposta em um cardápio criativo, composto por drinks como o Caipichopp, uma caipirinha de limão com mel e gengibre coberta com uma densa e doce espuma parecida com a de chopp, e petiscos ousados como o Patriota, um espécie de hamuraki recheado de feijoada e couve mineira.
“O maior legado deixado para as pessoas que participam do Favela Orgânica é elas se amarem, é elas terem o prazer de viver, valorizar o ar que elas respiram”. Não duvidamos disso quando a vemos, com muito prazer, saboreando um dos hamurakis de feijoada, tendo como plano de fundo uma bela vista da praia do Leme.
Saímos de lá com a certeza de que Regina continuará colhendo frutos maravilhosos e inspirando mulheres e homens a amarem a vida tanto quanto ela.
1. Tartelete de brigadeiro de casca de banana | 2. Caldo de casca de abóbora com agrião, gergelim e azeite | 3. Caipichopp | 4. Patriota, o famoso hamuraki de feijoada do Bar do Alto
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