Empreendimento solidário em São Bernardo do Campo une geração de renda, autogestão e qualidade de vida
“A economia solidária e o movimento anti-manicomial nascem da mesma matriz – a luta contra a exclusão social e econômica. Uns são excluídos (e trancafiados) porque são loucos, outros porque são pobres. Há ricos, que enlouquecem porque empobreceram e há pobres, que enlouquecem porque ninguém os nota (o que é uma forma particularmente cruel de exclusão). A matriz comum de ambos é uma sociedade que fabrica pobres e loucos de modo casual e inconsciente”
Paul Singer
Inaugurado no dia 30 de julho de 2011, o Q’Sabor é uma pequena pastelaria localizada em São Bernardo do Campo, anexa à Central de Trabalho e Renda, na av. Marechal Deodoro.
O cheiro dos pasteis recheados e fritos na hora é a principal propaganda do empreendimento que, além de oferecer outros tipos de salgado, atua como um espaço de inclusão social e reconstrução de vidas para seus participantes.
Por trás do balcão da pastelaria estão usuários do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), serviço de saúde municipal que atende pessoas com transtornos mentais ou que tenham histórico de abuso de álcool e outras drogas.
Os CAPS fazem parte da Rede de Atenção Psicossocial de São Bernardo do Campo, que também é composta por residências terapêuticas, UAT’s (Unidades de Acolhimento Transitório) e o Nutrarte (Núcleo de Trabalho e Arte), onde são oferecidas oficinas de artesanato e alimentação.
Estes espaços são carro-chefe da Reforma Psiquiátrica Brasileira, movimento decorrente da Luta Antimanicomial, consolidado no Brasil nos anos 80, que busca substituir gradualmente os hospitais psiquiátricos e suas políticas de atuação por novas estruturas e formas de tratamento que promovam a inclusão social e a cidadania de seus pacientes.
Segundo dados divulgados em 2010 pela Associação Brasileira de Psiquiatria, 3% da população, o equivalente a 5 milhões de brasileiros, sofrem com transtornos mentais graves e persistentes, como esquizofrenia e bipolaridade. Quando internados em manicômios, estes homens e mulheres são separados de suas famílias e afastados de suas atividades cotidianas.
Por acreditar que a segregação social prejudica o quadro clínico dos pacientes, a Reforma Psiquiátrica propõe formas alternativas de tratamento, que resgatem a autoestima e o senso de pertencimento desta parte tão significativa da população.
Com este objetivo, os CAPS buscam manter os usuários integrados às suas famílias e comunidade, enquanto promovem oficinas e atividades lúdicas, oferecidas por uma equipe interdisciplinar composta por profissionais como psicólogos, psiquiatras, musicoterapeutas e artesãos.
A partir desta abordagem de cuidado e integração surgiu o Q’Sabor. Em 2011, usuários que participavam de uma oficina de alimentação promovida pelo Nutrarte começaram a vender empadas e outros alimentos em feiras e eventos de economia solidária.
Com o incentivo do Fórum Municipal de Economia Solidária, a Prefeitura cedeu um espaço fixo de comercialização para o grupo, onde também são vendidos produtos artesanais produzidos por outros grupos de economia solidária da cidade.
A partir de 2012, o empreendimento passou a receber a assessoria do Consulado da Mulher, que realizou a doação de eletrodomésticos à pastelaria com o objetivo de aumentar sua capacidade produtiva.
“Quando trabalhei aqui pela primeira vez, a cozinha não tinha nada, era só uma parede e duas bancadas, e a gente vendia os salgados em uma barraquinha. Agora que vi uma estrutura, fiquei contente pelo que meus colegas conquistaram! Fico feliz de poder trabalhar aqui de novo”, conta Marcio Tossi, usuário do CAPS que acompanhou o início da trajetória do grupo e esteve no empreendimento em março.
Tão importante quanto a doação dos eletrodomésticos têm sido as oficinas e capacitações oferecidas pelo instituto. Essas atividades, que incluem precificação de produtos e padronização de receitas, fazem com que conceitos de empreendedorismo sejam assimilados tanto na teoria quanto na prática pelos assessorados.
O processo fez do Q’Sabor não só em um espaço de transformação social, como também de geração de renda e autogestão. Prova disso é que o grupo aumentou sua renda média por pessoa em 189% vezes e seu faturamento em 385%. (confira o infográfico abaixo)
A palavra “doença” não existe no vocabulário desse grupo de empreendedores populares, conscientes de seus talentos e, principalmente, de sua capacidade de aprender e começar de novo.
É o caso de Sonia de Fatima Rosa, de 54 anos. Internada aos 19 anos em um manicômio, só voltou à vida normal em 2000. Os 23 anos de reclusão por conta do diagnóstico de esquizofrenia trouxeram-lhe perdas irreparáveis, no entanto, hoje ela afirma ter motivos para acordar disposta todos os dias.
Articulada, dona Sônia acompanha todos os processos do empreendimento e está sempre pronta para colaborar com ideias e reflexões. “Tudo aquilo que perdi, começou a ter uma melhora. Sinto agora que o meu passado e o meu presente caminham para futuro”, avalia.
Divaldo Soares, seu colega no empreendimento, compartilha do mesmo entusiasmo em relação ao futuro. Tanto é que hoje, aos 40 anos, ele está completando o ensino médio pelo sistema EJA – Educação de Jovens e Adultos: “Quando comecei a atender clientes aqui no Q’Sabor, percebi que tinha dificuldade em devolver o troco certo, por exemplo. Foi quando decidi que tinha que voltar a estudar”, conta.
A inclusão social promovida pelas atividades no Q’Sabor trazem ao grupo não só a possibilidade de fazer planos para o futuro, como também força e motivação para superar as dificuldades e enfrentar um velho conhecido: o preconceito. É o que conta o também integrante da pastelaria Roberto Peres de Moraes, de 34 anos: “Enfrentar o preconceito não é fácil, mas o trabalho ajuda a passar por tudo isso”.
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